Nas entrelinhas das demissões na Rede Globo e o que isso tem a ver com a democracia

Por Cristina Serra

O que tem acontecido nos últimos dias nas redações da Globo ultrapassa um processo de demissão em massa para enxugar a folha salarial. É um processo de desmonte que fica muito claro quando se sabe quem está sendo demitido. Em primeiro lugar, como está claro, sai uma leva de veteranos talentosíssimos sem os quais não teria sido criado o tal padrão Globo de qualidade.

É uma turma que está entre 50 e 60 anos, alguns construíram toda a sua carreira nesta única empresa. A mesma que chega agora e lhes diz: “Não precisamos mais de você.” As demissões não são apenas para economizar na folha salarial. Elas indicam um desmonte do modelo de negócios, a desarticulação da sua operação de jornalismo tal como a conhecemos hoje, com cinco telejornais nacionais diários (fora o jornalismo local que sempre foi muito importante na grade da emissora).

Entre os veteranos demitidos, tem uma turma que trabalha atrás das câmeras: editores, produtores e chefes intermediários, que fazem a roda girar, isto é, botam os telejornais de pé todos os dias. Quem não conhece a engrenagem da TV por dentro não tem ideia da estrutura de pessoal necessária para botar os noticiários no ar. A demissão desses talentos veteranos destrói uma memória de décadas de construção do padrão Globo.

Goste-se ou não da empresa, essa é uma reflexão necessária que faço até mesmo em homenagem aos colegas e amigos demitidos e também às centenas de profissionais sérios que permanecem na empresa e que terão que, a partir de agora, trabalhar dobrado. É fato que as tecnologias, cada vez mais disruptivas, estão desconstruindo o mundo do trabalho, mas custa-me crer que uma empresa do tamanho da Globo não tenha capacidade de realocar essas pessoas em outras atividades.

Até onde posso enxergar, a Globo está orientando sua atuação para o mercado de streaming, que precisa de pesquisadores, roteiristas e outras funções. Entre os demitidos, muitos poderiam exercer essas funções, estão no auge do seu amadurecimento profissional (e o aproveitamento no streaming é só um exemplo). Tenho dificuldade de entender como podem ser descartados numa canetada por corte de custos quando se sabe que a família proprietária da empresa está na lista dos mais ricos do Brasil. A verdade é que jornalistas mais velhos, mais experientes e mais maduros, em geral, são também mais críticos, fazem mais perguntas, questionam mais.

Não pude deixar de observar também um certo requinte de crueldade em algumas demissões. Tomo o cuidado de não mencionar nomes porque não há uma lista oficial das dispensas e o que soube foi o que li na imprensa. Alguns veículos tiveram que publicar “erramos” por terem noticiado nomes de jornalistas que não foram demitidos. Mas quero mencionar duas situações. Uma delas foi a demissão de uma apresentadora (de uma emissora afiliada) que acaba de voltar da licença maternidade. O recado é: “Jornalistas mulheres, não engravidem.”

A outra situação é a de um repórter investigativo, daqueles que só trabalham com assunto complicado, “cabeludo”, como se diz na profissão. Repórteres investigativos precisam da retaguarda das empresas em que trabalham porque, não raro, ficam expostos a riscos e ameaças daqueles a quem incomodam. Vejo aí uma mensagem velada de descompromisso com seus profissionais, mesmo aqueles que tanto se arriscam para fazer matérias relevantes, que envolvem uma série de perigos e que, por isso mesmo, alavancam a audiência.

É tudo muito desrespeitoso e chocante. E ainda vai piorar. O avanço da Inteligência Artificial terá efeitos ainda mais avassaladores e disruptivos no mercado de trabalho. A sensação que tenho é que as empresas de comunicação precisarão apenas de “operadores”e não mais de jornalistas com senso crítico e capacidade de compreender o mundo à sua volta. A IA será devastadora para o mundo do trabalho, irá concentrar ainda mais capital, mais poder econômico e – o pior de tudo – mais poder editorial. Isso é um perigo – mais um – para a democracia no Brasil.

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