O busto de Voltaire ou O neoliberalismo não é liberal
Zemaria Pinto
o original talvez fosse de mármore
ou bronze
ou ferro
sobre a mesa, o gesso branco
barato
roto
desbotado
moldado aos milhares
vagabundo e solitário
a falsa cabeleira, a calva oculta
os olhos baços, o nariz adunco
o lábio em linha, a boca de improváveis dentes
e o queixo penso ao peito, peso da corcova
representação da velhice
símbolo de uma era morta
metáfora da decadência
alegoria da ruína
mas
o busto pensa e, mais que isso, luta:
um mundo sem ameias, nem peias verdades
a dúvida como dogma
as vísceras como dívida
a liberdade, uma dádiva
a igualdade, um anelo
contra a opressão um libelo
meus olhos pousam na podre estrutura
buscando o cerne além do simulacro
e um turbilhão de ideias me avassala:
nunca um pequeno busto foi tão belo!
Amazonas, vazante de 2019
Zemaria Pinto
José Maria Pinto de Figueiredo, poeta e crítico literário, naceu em Santarém, no Pará, no dia 6 de maio de 1957. Fixou-se em Manaus, onde realizou seus estudos. É formado em Economia pela Universidade Federal do Amazonas. Poeta de sólida formação literária, foi professor de Literatura Brasileira na Universidade Federal do Amazonas. É editor do jornal poético ”O Fingidor”. Com sua obra divulgada esparsamente, publicou seu primeiro livro de poemas, Corpoenigma: haicais, em 1994. Os outros três livros são: Fragmentos de silêncio (Manaus, 1996), Música para surdos (Manaus,2001) e Dabacuri (Manaus,2004).