Druuna. Muito além da mulher mais gostosa dos quadrinhos


Considerada a “mulher de papel” mais sensual da história, personagem carrega em si uma reflexão profunda acerca da decadência da civilização ocidental

Paolo Eleuteri Serpieri nasceu em Veneza em 1944. Aquele que viria a ser um dos maiores símbolos da festejada cena dos quadrinhos italianos estudou na Academia de Belas Artes de Roma, tendo como inspiração e mestre Renato Guttuso, um comunista histórico e maior expoente do neorrealismo.

Iniciada carreira de pintor em 1966, Serpieri vidrou em anatomia, e este passou a ser seu foco. Atuou também como professor, antes de chegar aos quadrinhos, em 1975. Trabalhou nos fumetti (como são chamadas as HQ na Itália) através da revista Lanciostory. Foi um salto para fora do academicismo. Iniciava ali uma paixão, aos 31 anos.

Desenhou para a SkorpioIl Fumetto L’Eternauta e Orient Express. Desenhou também para a Larousse, uma série sobre a Bíblia Sagrada. A arte sequencial foi aprimorada pelo seu talento em diagramar histórias. E principalmente pelo seu traço.

Pensou muito antes de criar seu próprio universo. Lamentava, pelo excesso de trabalho, o tempo que perdia pesquisando História, para servir à criação de sequências para os faroestes (a grande febre do fumetti nos anos 60 e 70 na Itália, que ganhou o mundo). Quando partiu para sua criação própria, não errou.

Em 1985, o autor criou uma mulher muito sensual, imaginou um futuro distante e distópico, no qual um vírus consumiu o planeta e transformou parte da humanidade em bichos mutantes. A mulher: Druuna.

As primeiras histórias da heroína são lançadas em livro por Serpieri, em uma série chamada Morbus Gravis. As histórias de Druuna aparecem também nas cultuadas revistas Heavy metal e Metal Hurlant. O sucesso é instantâneo. Nunca se viu uma mulher mais atraente nas páginas de uma revista. E ela era “de papel”.

O talento inigualável de Serpieri para destacar as formas femininas e o erotismo o imortalizou no mundo das artes gráficas. A coisa vai além. Perversidade e violência estão no imaginário de Druuna, e tudo é sempre passivo de discussão, levando o leitor ao interesse sobre diversos assuntos tabus. Lembremos sempre que tudo isso se passava na Itália, um dos países naturalmente mais conservadores do mundo, sob as barbas da Igreja e da democracia cristã. Não eram poucos os temas que eram tabus, portanto.

Druuna acaba por ser uma espécie de iluminação para os arautos da liberdade sexual. Naquele universo destruído, no melhor estilo Mad Max ou Blade Runner, Druuna acaba por representar algo “do passado”.  Explicando: ela é um personagem, dentro de um mundo acabado, que “ainda” gosta de sexo.

Uma mulher livre, em um mundo praticamente extinto, no qual as mulheres nunca chegaram a serem livres propriamente. Fica a partir daí a profunda reflexão. Serpieri joga uma semente que brota em tudo que a humanidade pode ter de ruim, e que leva a sua própria destruição. Por isso, há talvez uma espécie de “estetização do estupro” em suas histórias.  O que sobra neste mundo em ruínas, ainda e sempre, é o instinto.  Druuna é um animal instintivo, que vive em cada leitor ou leitora.

Com tudo que traz de vício e perversidade, a trama geral de Druuna, sua própria existência neste universo, é o contraponto de uma sociedade em crise, tão tortuosa como aquela que foi dominada por um vírus (veja aqui onde estamos, em 2021) que levou à destruição do mundo civilizado.

O desejo reprimido. A mulher que nasce e cresce em um mundo que a oprime. Druuna é uma espécie de Alice perdida num “país das maravilhas” violento. Como se já não fosse suficientemente confuso e violento o mundo paralelo criado por Lewis Carrol a seu personagem mais conhecido. Serpieri apenas “destrói” o mundo em que vivemos.

Não são poucos os desenhistas que lançaram seus leitores em universos de distopia e ficção científica, e principalmente “mulheres de papel” que se tornaram ícones. Barbarella do francês Jean-Claude Forest e Valentina do italiano Guido Crepax são heroínas que vieram antes. Barbarella inclusive ganhou as telas de cinema, com Jane Fonda, pelas mãos de Roger Vadim. Isso pra não falarmos do mestre Milo Manara, com o qual Serpieri é muitas vezes confundido.

O caso é que Druuna é a mais humana. E — reza o gosto masculino mais fiel (este mesmo que oprime) dos quadrinhos —, antes de tudo uma unanimidade: é a mulher mais gostosa de toda história das HQs.

Prestando a atenção devida, todos chegam à conclusão de que ela é muito mais que isso.

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