AS MENTES POR TRÁS DA CIRCO EDITORIAL
UMA TRAJETÓRIA PELOS ANOS 1970 E 1980
RESUMO
A Circo Editorial foi uma das principais editoras de histórias em quadrinhos nos anos 1980.
Revistas como Circo, Geraldão e, principalmente, Chiclete com Banana, fizeram parte não
apenas do mundo editorial nacional como também do imaginário juvenil daquele período
onde o Brasil saía de uma ditadura militar e entrava na chamada Nova República. A editora
se constituiu a partir da figura central de Toninho Mendes, o empresário/editor que levou a
cabo a ideia de diversas revistas circularem pelo país, mostrando talentos que, embora
fossem conhecidos por conta de suas participações em jornais de grande expressão, nunca
haviam sido lançados como artistas de quadrinhos em periódicos específicos para este fim.
Na empreitada com Toninho, estiveram nomes como Angeli, Laerte, Luiz Gê, os irmãos
Chico e Paulo Caruso entre outros artistas. A ideia deste artigo é traçar uma biografia destes
artistas, objetivando mostrar como a editora foi montada e como trabalhava, bem como a
relação desta e os desmandos governamentais, a escalada da inflação e as dificuldades
enfrentadas para colocar nas bancas de jornais de um país continental revistas mensalmente.
Por fim, veremos questões históricas do período, questões financeiras e de tiragem, que
ajudarão a preencher uma lacuna acerca da produção quadrinística brasileira no período
citado.
PALAVRAS-CHAVE: História; História em Quadrinhos; Produção de quadrinhos
CORPO DO TRABALHO
O presente artigo tentará apresentar as pessoas que trabalhavam na editora Circo,
talvez a mais importante editora de histórias em quadrinhos brasileira nos anos 1980, dada
sua originalidade e ousadia. Como veremos, esta editora foi “lar” de influentes artistas e
revolucionou, de certa foram, a maneira como os brasileiros consumiam quadrinhos àquele
período.
Antônio de Souza Mendes Neto, muito mais conhecido como Toninho Mendes,
nasceu em Itapeva, interior do Estado de São Paulo em 1954, filho de um motorista de
caminhão que posteriormente se tornaria dono de um bar no bairro da Casa Verde, já na
capital São Paulo.
No bairro havia uma feira, e na feira uma banca de quadrinhos usados. Ali na banca,
de acordo com Finotti (2014), Toninho Mendes e Angeli se conheceram, o primeiro com
doze anos e o segundo com dez. Seu interesse em comum eram os quadrinhos de Tarzan,
Tio Patinhas, Sobrinhos do Capitão e Bolinha entre muitos outros.
Alguns anos depois, quando Mendes estava com 15 anos o Pasquim chega às bancas
de São Paulo e promove uma revolução na mente dos dois jovens, que nunca haviam tido
contato com cartuns tão bem elaborados, adultos e localizados na realidade brasileira
quanto os de Jaguar, Ziraldo, Millôr e, principalmente, Henfil. Os dois jovens
compreenderam que havia mais nos quadrinhos do que apenas entretenimento para
crianças. E três anos depois surge nas bancas paulistas a revista que mudaria novamente os conceitos de Mendes e Angeli: a Grilo. Foi com essa revista que conheceram os comix
norte-americanos de Robert Crumb e também os quadrinhos europeus de vanguarda como
Wolinski e Guido Crepax. Silva (2011) diz que dos quadrinhos da Pasquim, Mendes e
Angeli assimilaram o humor brasileiro nos quadrinhos e também a postura contestadora que estes artistas tomavam em relação ao governo e à sociedade como um todo. Dos quadrinhos
de Crumb e Wolinski assimilaram principalmente a originalidade e a escolha de temas
polêmicos, além das ideias empreendedoras de Crumb e seus colegas.
Toninho Mendes passa a década de 1970, segundo Finotti (2014), mudando de
empregos, mas ao mesmo tempo acumulando experiências nas áreas de paste-up1
,
diagramação e produção gráfica, que seriam valiosíssimas quando decidiu criar a Circo
Editorial. Ele trabalhou em diversas gráficas e editoras, entre elas Símbolo, Mestre Jou,
Diagrama, Três e também no jornal Aqui São Paulo, de Samuel Wainer, pai de Samuel
Wainer Filho, anteriormente mencionado.
Em 1975, como conta Silva (2011), estabiliza-se no jornal Versus, jornal mensal de
esquerda que nasceu por conta da morte de Wladimir Herzog e do sentimento de frustração que se abateu nos militantes anti-regime. Mesmo tendo pouca tiragem – cerca de 12 mil
exemplares – e ser precariamente distribuído, o jornal ajudou Toninho Mendes a aprimorarse no ofício de diagramador. Finotti (2014) diz que a maior dificuldade do cargo era fazer caber toda a quantidade de texto que chegava à redação em meras 48 páginas internas.
Além desse aprendizado, como o jornal era muito pequeno, pôde entender como
1 Past up é uma antiga técnica de diagramação, que consistia em colar, com cola de benzina as lâminas de texto
previamente encomendadas a terceiros que faziam o serviço de fotocomposição.
funcionavam todas as demais áreas da produção de um periódico, como distribuição,
gráficas e acordos.
Mendes também aproveitou seu período de três anos no jornal para conhecer quase
todos os artistas que mais tarde trabalhariam com ele na Circo Editorial, como Luiz Gê,
Chico Caruso, Paulo Caruso, Alcy e outros tantos. E com eles, ainda no Versus,
experimentou diversas soluções gráficas.
Quando se desentendeu com os diretores da revista e pediu sua demissão, encontrou
Chico Caruso, que naquele momento fazia charges para a revista Istoé, que havia sido
recém criada para concorrer com a revista Veja, da editora Abril. Caruso apresentou
Mendes a Hélio de Almeida, diretor de arte da Istoé, e foi com ele que Mendes aprendeu
muito do seu ofício de artista gráfico e editor. Esse contato também gerou em Mendes a
vontade de ter sua própria editora, que poucos meses depois abriu a Editora Marco Zero,
que lançou três livros em 1980: A confissão para o Tietê, do próprio Toninho Mendes,
Coisas da Negra Sarará, de Roque de Souza e Natureza Morta de Chico Caruso. As
vendagens, como informa Finotti (2014) foram quase nulas, e a editora fechou suas portas,
não sem antes dar a Mendes boa experiência sobre mercado editorial.
Mais três anos se passaram e Mendes foi procurado por um colega que se ofereceu
para abrir uma editora. Toninho Mendes entraria com o trabalho e o outro sócio entraria
com o dinheiro necessário e cuidaria da administração da nova editora. A ideia de Mendes,
ainda de acordo com Finotti (2014) era lançar dois livros no dia da votação das Diretas Já,
25 de abril de 1984,: um de Angeli e outro de Chico Caruso, ambos com republicações dos
materiais que estes faziam para o jornal Folha de São Paulo, com distribuição pela editora
Brasiliense em livrarias de todo o Brasil. Dois meses antes de os livros saírem, porém, o
sócio de Mendes – e investidor da empreitada – decidiu sair do negócio, e coube a Chico
Caruso pagar os custos de produção dos livros da nova Circo Editorial. Além disso, Caruso
também percebeu que um livro de charges lançado naquele momento ficaria defasado em
pouquíssimo tempo, já que no dia seguinte haveria toda uma reformulação no Brasil que
não poderia faltar no livro. Dessa forma, Mendes e Caruso decidiram lançar apenas o livro
de Angeli.
Assim, com tiragem inicial de 3 mil cópias, Chiclete com Banana, Bob Cuspe e
Outros Inúteis saiu efetivamente dia 25 de abril de 1984, como mostra Bryan (2004). Seu
lançamento ocorreu na Rádio Clube, danceteria que, como já comentamos, abriu suas portas pouco mais de um mês antes. Angeli (apud Bryan 2004 p. 312), neste momento chegou a dizer Acho que o Toninho, de uma maneira bem desleixada, descompromissada e sem nenhum ideal de montar uma grande editora, começa a mudar a cara do mercado
de quadrinho nacional. O que eu estava ensaiando dentro da Folha de São Paulo,
sempre quis fazer e ficava na gaveta, não teria como se encaixar dentro do
mercado se não fosse ele. Se eu era a cabeça da Chiclete com Banana, Toninho
era o coração. Segurou o discurso de todo mundo com maestria de um grande
editor, pelo seguinte: nunca interferiu em nada.
A empreitada deu certo e no segundo semestre de 1984 e primeiro de 1985 houve
vários lançamentos de livros pela Circo Editorial. Angeli lançou uma edição com a Rê
Bordosa, Luiz Gê lançou Quadrinhos em fúria e Laerte lançou O tamanho da coisa. Além
dos quadrinhos, também um livro de xilogravuras de Rubem Grilo também foi editado.
A partir daí, Mendes percebeu um mercado carente de publicações cômicas para
jovens e o próximo passo foi criar a revista Chiclete com Banana, como veremos.
Chico Caruso é irmão gêmeo de Paulo Caruso, e ambos estavam, no final da década
de 1970, sendo reconhecidos como grandes chargistas. Chico era mais ligado à Toninho
Mendes, tendo inclusive emprestado dinheiro para os projetos deste, como já vimos. Os
irmãos Caruso começaram sua caminhada também por meio da revista Balão, como já
dissemos, ainda quando estudantes. A partir daí decidiram enveredar para o caminho da
charge política mesmo em um momento em que seus colegas – como Angeli, Laerte e Luiz
Gê, por exemplo – iniciavam sua caminhada para uma crítica de costumes, afastada da
política partidária e mais voltada ao cidadão comum e ao jovem em especial.
Sua carreira começou no final da década de 1960, publicando em periódicos como
Opinião e Movimento. Mais tarde mudou-se para revistas como Istoé e Veja. Chico Caruso
desenvolveu sua técnica a partir da oposição à técnica de Henfil. Moraes (1997, p.389) diz
que no início de sua carreira, Chico percebeu que, para imprimir uma linha distintiva
no seu trabalho, teria que se desapegar de valores consagrados pela geração de
Jaguar, Ziraldo e Millôr, como a fala coloquial e a espontaneidade do traço. No entender de Chico, Henfil ultrapassara tais valores com um desenho “que transmitia a sensação fantástica de deslizamento e de velocidade, uma coisaintuitiva e mágica sem explicação no plano físico”. Chico enveredou para um traço menos espontâneo e esteticamente mais rebuscado.
Como já dissemos, conheceu Toninho Mendes na redação da Istoé, e constituíram
além de amizade uma vontade de trabalhar junto, que se iniciou no investimento da
primeira obra editada pela Circo Editorial. Desde então participou ativamente dos processos
políticos brasileiros fazendo charges para a Istoé e um pouco mais tarde para o Jornal do
Brasil. Seu irmão Paulo, trilhou caminho parecido, também trabalhando em grandes
semanários como Veja, Senhor e Istoé, sempre fazendo charges sobre a política brasileira, e com traço parecido com o do irmão gêmeo. Na Chiclete com Banana chegou a desenvolver uma história na edição número 2, intitulada Revolução Sexual. A história é um misto de aventura, pornografia e crítica política, na qual os protagonistas estão fazendo sexo na praia e são sequestrados por uma organização anti-sexo e anti-juventude. Mais tarde são resgatados por outra entidade, esta a favor da revolução sexual e que precisa do
protagonista para acabar com os inimigos. Seus desenhos são explícitos, com nudez
constante e palavreado chulo. Algo totalmente diferente do seu trabalho comum de charge
política e muito mais perto da crítica sexual e de costumes do que crítica política.
Luiz Gê também iniciou sua carreira na revista Balão, que fundou em conjunto com
Laerte quando ainda era aluno da USP. Depois de graduado, como nos conta Chinen
(2014), Gê foi trabalhar em diversas revistas, entre elas a Status, onde conheceu Toninho
Mendes. Ao mesmo tempo, tornou-se editor da área de quadrinhos do jornal Extra, de São
Paulo, o que lhe conferiu grande habilidade na área de diagramação e edição visual.
Alguns anos mais tarde, em 1987, foi chamado por Toninho Mendes para editar a
revista Circo que, de acordo com Chinen (2014) tinha uma proposta ousada de trazer para o Brasil grandes quadrinistas europeus e misturá-los com os brasileiros em uma publicação de 64 páginas. Ousada também era a diagramação imposta por Gê, que desde o editorial já
inseria diversos elementos gráficos não usuais em revistas.
A Circo durou oito edições somente, pois Luiz Gê mudou-se para Londres onde
ingressaria no Royal College of Art e sem ele a revista não se sustentou. Na Chiclete com
Banana Gê contribuiu diversas vezes, mas talvez a mais simbólica tenha sido na estreia da
revista. Na Chiclete com Banana número 1 Gê cria uma história surreal na qual as estátuas
do Monumento às Bandeiras, localizado na capital paulista ganham vida e atravessam um cruzamento sob o olhar incrédulo de um casal em seu carro, mostrando uma das maiores
características da obra não só de Gê, mas de toda a geração aqui estudada: a cidade, como
podemos ver pela imagem abaixo.
Santos (2014 p. 414) diz que “a cidade de São Paulo, com seu horizonte atulhado de
prédios e suas ruas apinhadas de automóveis e transeuntes, é pano de fundo e personagem atuante de diversas histórias.”
Parceiro de Gê na criação da Balão, Laerte Coutinho também foi um dos mais ativos
colaboradores da Circo Editorial. Santos (2012) diz que Laerte nasceu em 10 de junho de
1951, e que pertencia a uma família de classe média alta, cujo pai era professor
universitário. Entrou nas USP aos dezoito anos para cursar Comunicação e Cultura, mais
tarde transferiu-se para Comunicação e Artes. Fez Música e Jornalismo, mas não se formou
em nenhum deles.
Laerte conheceu Mendes por meio de Angeli. No final de 1975, como já dissemos,
Laerte havia sido encarregado de encontrar cartunistas para o PCB no Rio de Janeiro, para o que mais tarde virou a Oboré, também já mencionada no tópico sobre Henfil. Neste
contexto Laerte foi atrás também de Angeli, que já havia encontrado em alguns salões de
humor e já eram admiradores do trabalho um do outro, mesmo porque, segundo Alencar
(2014), em 1974 Laerte já era vencedor do Salão de Humor de Piracicaba, um dos maiores
do país e Angeli já publicava na Folha de São Paulo.
Já na edição de número 4 da Chiclete com Banana Laerte faz uma participação, e
inaugura as personagens anárquicas Piratas do Tietê, conforme figura abaixo, que mais
tarde foi também título e carro-chefe da publicação comandada por Laerte na Circo
Editorial.
A partir daí a parceria consolida-se não somente com Toninho Mendes mas também
com Angeli. Começam a ficar recorrentes quadrinhos e histórias de ambos os artistas. Dois
números depois da sua estreia, Laerte já dividia um quadrinho-pôster com Angeli intitulado
Paulista também trepa, em que ambos desenham pessoas fazendo sexo como em uma
máquina industrial, e outras tantas parcerias são feitas ao longo dos anos. Mas a parceria
mais lembrada, que gerou revistas individuais, pôsteres, camisetas e aclamação pública foi
Los três amigos, em que Laerte e Angeli dividiam com Glauco a criação de uma trupe de
bandoleiros no oeste americano encarnado por caricaturas dos três criadores: Angel Villa,
Glauquito e Laertón.
Em maio de 1990, com periodicidade mensal, chegou as bancas a quarta revista da
Circo Editorial, Piratas do Tietê, título individual de Laerte. A revista, de acordo com
Alencar (2014) custava Cr$ 90,00 e tinha orientação horizontal, tal qual a Fradim, de
Henfil. Entretanto, diferente da revista de seu tutor, no número 3 assumiu o formato
vertical, para ser mais vendável.
Depois de muitos problemas de periodicidade e com uma inflação que fez com que
o número 14 custasse Cr$ 3.300,00 a revista chegou ao seu final em abril de 1992.
Glauco Vilas Boas foi descoberto ao mesmo tempo por Angeli e Laerte e também
por Henfil. Ramos (2014) diz que Henfil praticamente “adotou” Glauco, tendo-o como
discípulo, principalmente por conta do seu traço rápido, leve e minimalista. Eles se
conheceram, segundo Moraes (1997), em 1978 quando Glauco ganhou prêmio no 5º Salão
de Humor de Piracicaba, no qual Henfil era jurado.
Logo em seguida, Henfil convidou-o para morar no seu apartamento-estúdio, como
já dissemos, e ele passou a integrar o rol de pessoas que faziam trabalhos políticos para a
Oboré. Um pouco depois dessa fase, Glauco começou a publicar seu Geraldão no caderno
Ilustrada, da Folha de São Paulo. Ramos (2014) diz que o primeiro livro de Glauco pela
Circo Editorial foi Espocando a Cilibina, vendido em bancas de jornal e que teve tiragem
de 20 mil exemplares, em abril de 1986.
A primeira participação de Glauco na Chiclete com Banana deu-se no já número 3
da revista, com o Casal Neuras, um mês antes do lançamento de Espocando a Cilibina.
Pouco mais de um ano depois, a Circo Editorial lança seu terceiro título regular: a
revista Geraldão. Ela deveria ser trimestral, mas dadas as condições e um mercado
favorável, teve sua periodicidade diminuída para bimestral, e assim durou 10 números. A
partir daí, como informa Santos (2014), a revista passou para o selo Palhaço, cuja
administração era feita pelo irmão de Toninho Mendes, Márcio Tadeu, e durou apenas
poucos números mais.
A Geraldão, apesar de ter o nome Glauco na capa, continha outros tantos
colaboradores em seu miolo. Ramos (2014) afirma que cerca de dois terços da revista era
composto por colaboradores. Entre eles, o mais notável era Laerte, seja com suas histórias
solo, seja em parceria com Glauco. Havia também sessões fixas na revista, tais como
Abobrinhas na Brasilônia, com charges de Glauco, Máximas e mínimas, de Toninho
Mendes (sob a alcunha de Visconde da Casa verde) e Temas impertinentes, de Emílio
Damiani, que também fazias as vezes de editor de arte da publicação.
Ramos (2014) salienta a ousadia de Glauco. Afinal, Geraldão queria fazer sexo com
a própria mãe, usava drogas injetáveis e andava nu. Era uma forma de, ao alvorecer da
Nova República, testar os limites da liberdade de expressão.
Infelizmente a carreira de Glauco acabou junto com a sua vida quando ele e seu
filho foram assassinados no início de 2010, alijando o Brasil de um de seus quadrinistas
mais brilhantes.
Seu principal companheiro, Arnaldo Angeli Filho, mais conhecido como Angeli,
nasceu em 31 de agosto de 1956, no bairro da Casa Verde, zona norte da cidade de São
Paulo, filho de um funileiro e uma costureira. Vergueiro (2014) diz que depois de reprovar
a primeira série do ginásio pela terceira vez foi expulso do colégio que frequentava. Assim,
como informa Silva (2011 p. 46) Angeli muniu-se intelectualmente a partir de suas experiências pessoais e das impressões captadas por seu olhar perspicaz do cenário que se apresentava e ao mesmo tempo se modificava em torno dele. Ou seja, a escola de Angeli foi sua própria vida. As impressões por ele absorvidas ao longo de sua história,
contribuíram para sua formação como sujeito do seu próprio momento e
refletiram-se na sua produção artística, fazendo-nos verificar que é possível, por
meio das criaturas, traçar um perfil do seu criador. Angeli estudava aquilo que lhe
interessava, portanto, lia aquilo que fazia parte do seu universo comportamental,
estava antenado com os interesses da sua tribo, do seu grupo, e a partir desta
lente, trilhou seu caminho criativo, constituindo-se no autor de obra relevante,
como “intelectual do traço”.
Aos quatorze anos Angeli publicou seu primeiro trabalho profissional, na revista
Senhor. Neste período é nítida a influência do traço de Millôr Fernandes e Jaguar no seu.
Pouco menos de um ano depois, por meio da revista Grilo, toma conhecimento dos
quadrinhos de Robert Crumb e do cenário underground norte-americano. Essa descoberta
fez com que seu estilo mudasse um pouco, ao mesmo tempo em que abriu para Angeli
novas possibilidades de expressão.
Sem espaço para publicar, como mostra Santos (2012), Angeli tenta a sorte em
diversas publicações, e tem um desenho seu publicado na sessão de cartas do Pasquim.
Com sua arte estampada, aos dezesseis anos decide procurar por Henfil, que foi muito
gentil e incentivador, estimulando o rapaz a prosseguir na profissão, como informa Moraes
(1997). A partir desse contato começa a publicar no Pasquim no ano seguinte.
Na volta para São Paulo, criou, junto com amigos do bairro da Casa Verde, o
Patatá, que, ainda segundo Santos (2012) pode ter sido o primeiro jornal alternativo de São Paulo. Esse jornal era feito enquanto Angeli vivia em uma espécie de comunidade hippie, que alugara uma casa e vivia ali em comunato.
Poucos meses depois, Angeli ficou com a terceira colocação na segunda edição do
Salão de Humor de Piracicaba, e, de acordo com Coimbra (2008), seu trabalho chamou
atenção de Cláudio Abramo, que o convidou para criar as charges diárias da Folha de São
Paulo. Assim, aos dezessete anos, em 1973, Angeli era o mais novo chargista de política do
maior jornal do país.
Neste período, Angeli colaborou com outros vários periódicos, dos quais destacamos, em conjunto com Santos (2012), Versus, Movimento, Pasquim e até mesmo a
revista Balão do seu companheiro Laerte, com quem faria trabalhos regulares na Oboré a
partir de 1978.
Colaborando com a Oboré e sendo chargista da Folha de São Paulo, Angeli mudouse para o apartamento-estúdio de Henfil, junto com Nilson, Glauco e Laerte. Ali no
“bunker” teve possibilidade de ampliar seu domínio sobre a arte, graças à troca de
experiências com os outros artistas e também ao incentivo e dicas de Henfil.
O uso de drogas e o sexo livre eram tônicas daquela época, consumia-se muita
cocaína e maconha e havia muitas mulheres dispostas a fazer sexo com Angeli, como
Glauco (apud Garcia e Paiva 2011) ressalta. Além disso, frequentava diversos bares, boates
e centros de entretenimento, sempre em companhia de seus companheiros de residência.
Essa origem reflete em dois pontos cruciais do trabalho de Angeli: a crítica social,
oriunda dos trabalhos e da militância no período em que fazia a Oboré e convivia com Henfil diariamente e a crítica de costumes, vinda da observação das ruas, dos
relacionamentos e de suas experiências com drogas e o momento cultural proporcionado
pela liberação sexual e repressão governamental.
Em 1979 Angeli e Henfil se desentenderam e nunca mais trabalharam juntos, como
já vimos. Mesmo assim, suas colaborações para o Pasquim continuaram, porém o trabalho
de Angeli foi aos poucos modificando-se para o que ele entendia ser uma nova política,
agora sem a repressão ferrenha da ditadura, que estava em seu processo de lento e gradual
retorno à sociedade civil.
Em 1982, como conta Coimbra (2008), Angeli levou à direção da Folha de São
Paulo uma proposta de fazer tiras de jornal com foco na crítica de costumes, e não apenas
na crítica político-partidária. Sua ideia foi aceita e já em 1983 suas tiras intituladas Chiclete
com Banana começaram a sair no caderno Ilustrada ao lado de tiras norte-americanas e de
Maurício de Sousa e Ciça.
A expressão Chiclete com Banana, que Angeli escolheu para suas tiras diárias
surgiu pela primeira vez, como lembra Vergueiro (2014) no samba de autoria de
Gordurinha e Almira Castilho e que ficou famosa na gravação feita por Jackson do
Pandeiro: Eu só boto bebop no meu samba / Quando Tio Sam tocar um tamborim / Quando
ele pegar / No pandeiro e no zabumba / Quando ele aprender / Que o samba não é rumba /
Aí eu vou misturar / Miami com Copacabana / Chiclete eu misturo com banana, / E o meu
samba vai ficar assim: /Tururururururi bop-bebop-bebop / Eu quero ver a confusão /
Tururururururi bop-bebop-bebop / Olha aí, o samba-rock, meu irmão / É, mas em
compensação, / Eu quero ver um boogie-woogie / De pandeiro e violão. / Eu quero ver o
Tio Sam / De frigideira / Numa batucada brasileira. Angeli achou a crítica aos EUA e aos
costumes locais presentes na canção perfeitas para nomear ser trabalho.
A partir daí a tira com as personagens de Angeli começam a ganhar mais e mais
público, chegando a ficar mais populares do que as estrangeiras que habitavam o jornal até
então, e rivalizar com as de Maurício de Sousa.
O próximo passo dado foi desenvolver em conjunto com Toninho Mendes o livreto
da coleção Traço e Riso para a personagem Bob Cuspe. E a partir da grande vendagem deste, os parceiros decidem lançar outra publicação: a revista Chiclete com Banana, onde
“talvez nunca na história dos quadrinhos brasileiros um único autor tenha se dedicado tanto
à confecção de uma revista própria como ocorreu com Angeli.” (VERGUEIRO, 2014, p.
41). A partir daí, tanto a Chiclete com Banana quanto a carreira de Angeli decolaram, ou
seja, alçaram voos maiores e conseguiram enorme projeção, com grandes tiragens e
tornando suas personagens e sua linguagem em ponto comum entre jovens, como pode-se
perceber pelas leituras posteriores do período.
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