Simão Pessoa, numa caricatura de Jack

 

HISTÓRIAS POLÍTICAS DO ARCO DA VELHA

Folclore Político do Amazonas tem o mérito, enfim, de expor incidentes humorísticos da mais recente fase de políticos amazonenses (quatro últimas décadas), num estilo simples e fluente, revelando dois aspectos do convívio com o poder e outros fenômenos políticos: o lado cômico da dura saga que é construir a história e a tragédia que tem sido fazer esse tipo de política que se estabeleceu na província das amazonas.

O folclore, ciência considerada indispensável para o conhecimento social e psicológico de um povo, deve seu nome ao arqueólogo inglêsWilliam John Thomas, que no dia 22 de agosto de 1846 empregou pela primeira vez a palavra folk-lore, composta de dois vocábulos saxônicos antigos: folk, significando povo, e lore, que quer dizer conhecimento ou ciência. Portanto, o folclore pode ser definido como a ciência. Que estuda todas as manifestações do saber popular.

No Brasil, após a reforma ortográfica de 1934, que eliminou a letra k, a palavra perdeu também o hífen e tornou –se folclore. O folclore é encontrado na literatura sob a forma de poemas, lendas, contos provérbios e canções, assim como nos costumes tradicionais como danças, jogos, crendices e supertições. Verifica-se também sua existência nas artes plásticas (na corrente chamada naïf ou primitivista) e nas mais diversas manifestações das atividades humanas.

Segundo a Carta do Folclore Brasileiro, aprovada pelo I Congresso Brasileiro de Folclore, em 1951, ‘’constituem fato folclórico as maneiras de pensar, sentir e agir de um povo, preservadas pela tradição popular, ou à renovação do patrimônio científico e artístico humano ou à fixação de uma orientação religiosa e filosófica’’.

Por este parâmetro, o folclore político, a grosso modo, mas sem baixarias, seria uma releitura de fatos políticos à luz da sabedoria popular, resultando em causos, estórias, tiradas ou chistes humorísticos, com ou sem fundo moral. Portanto, muitas das histórias podem nem ter ocorrido. Ou terem ocorrido, mas com outros personagens. Ou terem sido adaptadas livremente. Ou inventadas por algum desocupado. Algumas, imagino, nem devem ser verídicas. Outras, pelo grau de inverosimilhança, podem até ser verdadeiras. A política, tal como a praticamos ao sul do Equador, é a arte de fazer um boi voar. Limitei-me a relatar os fatos.

De qualquer forma, estas foram algumas das inquietações que estiveram presentes neste trabalho de pesquisa oral. Meus entrevistados contavam estas histórias como se tivessem presenciado a cena. Difícil descobrir o limite, a linha imaginária, o ponto de não-retorno, onde o fato banal se transforma em ficção, aí é posteriormente reelaborado e retorna ao imaginário popular, desta vez como verdade estabelecida.

Simão Pessoa

HISTÓRIAS POLÍTICAS DO ARCO DA VELHA

Álvaro Botelho Maia nasceu em 19 de fevereiro de 1893, no Seringal Goiabal, às margens do rio Madeira, no município de Humaitá, filho primogênito do seringalista Fausto Pereira Maia e de Josefina Botelho Maia. Seus irmãos Antônio Botelho Maia e Raimundo Botelho Maia também se destacaram na vida política do estado, o primeiro como prefeito de Manaus e o segundo como deputado federal entre 1948 e 1959.

Álvaro Maia realizou os primeiros estudos com seus pais no próprio seringal. Enviado em seguida a Manaus, concluiu o primário no Instituto Amazonense e cursou o secundário nos colégios Cinco de Setembro, Santana Néri e Pedro II. Aos 16 anos, iniciou suas atividades jornalísticas como colaborador do Jornal do Comércio, A Aura e O Libertador. Fez o serviço militar no 26.º Batalhão de Caçadores, tendo como companheiros de caserna o artista plástico Branco e Silva e o poeta Américo Antony.

A partir de 1913, frequentou durante dois anos a Faculdade de Direito do Ceará, período em que escreveu para os jornais Vaticano e Radical. Transferiu-se em seguida para o Rio de Janeiro, então Distrito Federal, onde concluiu seus estudos superiores em 1917 pela Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais. De volta a Manaus, fundou o jornal A Imprensa, tornou-se redator da Assembléia Legislativa e figurou entre os 30 fundadores da Academia Amazonense de Letras

Após a Revolução de 1930, foi nomeado interventor federal, tendo se exonerado do cargo no ano seguinte. Em 1935, foi escolhido senador pela Assembleia Estadual e, depois, também em eleição indireta, virou governador. Com o golpe político do Estado Novo, em 10 de novembro de 1937, foi nomeado outra vez interventor federal, mantendo-se no poder até a queda de Getúlio Vargas, em 29 de outubro de 1945.

Assim que assumiu o latifúndio amazonense, Álvaro Maia escolheu os prefeitos, despachou cada um para sua cidade e ficou em Manaus cuidando do governo. Do governo e da poesia. Gostava de perpetrar versos e promover saraus literários no Palácio Rio Negro. Publicou livros, alguns de boa crítica, como Buzina dos paranás. Para ele, um bom verso valia mais do que um bom despacho.

Um dia, chega a Manaus o prefeito de Lábrea, lá no infinito do rio Purus, quase no Acre.

– Senhor interventor, vim solicitar-lhe a demissão ou transferência do promotor, dr. Américo Antony. Está dando escândalos na cidade. Bebe muito, outro dia ficou nu na beira do rio. E há coisa pior, muito pior, senhor interventor! Além de todos os vexames, imagine V. Exa. que ele ainda é poeta.

O promotor ficou. O prefeito foi desnomeado na hora. É pra isso que servem os amigos de caserna.

 

HISTÓRIAS POLÍTICAS DO ARCO DA VELHA

No Amazonas, o Partido Comunista Brasileiro (PCB), também conhecido como Pecezão ou Partidão, foi fundado por pessoas humildes ligadas, basicamente, ao movimento operário. Entre os fundadores, meia dúzia deles se destacava pela coragem quase suicida e pelo apreço dedicado ao ideário marxista: Romeu Pimenta (guarda-livros), Belarmino Marreiro (barbeiro), Luís Capinha (sapateiro), Maria Pucu (doméstica), Geraldo Campelo (bancário) e Juca Moveleiro (carpinteiro).

Como em grande parte de sua história o partido sempre esteve na ilegalidade, as reuniões eram fechadíssimas e havia uma espécie de dispositivo paramilitar para garantir a integridade física dos militantes.

Numa das reuniões, logo depois do golpe militar de 64, o partido discutia a necessidade de executar ou não algumas tarefas de “agit-prop” (“agitação e propaganda”) contra o regime dos generais, ou seja, pichar muros, distribuir panfletos, fazer discursos relâmpagos em pontos de ônibus e por aí afora.

A velha-guarda (Romeu, Belarmino, Capinha etc.) insistia que o partido tinha de enfrentar o poder militar, nem que fosse para marcar posição. Os novos militantes (Antenor Caldas, José Paiva de Souza Filho, o “Paivinha”, Félix Valois etc.) pediam mais moderação porque vários camaradas já haviam “caídos” (sido presos), a repressão estava monitorando o movimento de todo mundo e era melhor dar um tempo até a poeira baixar.

Belarmino Marreiro pediu a palavra:

– Camaradas, essa proposta de imobilismo está me cheirando a reacionarismo…

Romeu Pimenta não tergiversou:

– Reacionarismo, uma ova! Isso está me cheirando mesmo é a cu-frouxismo!

E a própria velha-guarda se encarregou de fazer as tarefas de “agit-prop”.

 

HISTÓRIAS POLÍTICAS DO ARCO DA VELHA

Fevereiro de 1985. Eleito pelo PDS, o prefeito Raimundo Sobrinho, de Boa Vista do Ramos, estava tendo dificuldades para “rolar” a dívida do município e pediu ajuda ao deputado estadual Átila Lins, para agendar um encontro dele com o governador Gilberto Mestrinho. O ajuste fiscal que o boto navegador estava promovendo no Estado estava tirando o sono dos alcaides.

Na manhã de uma sexta-feira, o telefone do prefeito tocou. Do outro lado da linha, Átila Lins:

– Prefeito, estou aqui em Urucurituba. Pega uma voadora e se manda pra cá, que o governador vai lhe receber em audiência.

No início da tarde, Sobrinho chegou a Urucurituba, debaixo de um temporal diluviano. As ruas de barro haviam se transformado em cachoeiras de lama. Para não sujar a imaculada calça de linho, o prefeito enrolou a bainha da calça até o meio da canela.

Quando o prefeito entrou na sala da prefeitura, onde o governador estava realizando as audiências, o deputado percebeu que ele ainda estava com as calças enroladas. Átila Lins se aproximou discretamente do prefeito e sussurrou no seu ouvido:

– Abaixe a calça, prefeito!

Sobrinho levou um susto.

– Já?!! – reagiu. – Eu pensei que a gente pudesse primeiro negociar…

O deputado teve um trabalho do cão para desfazer o mal-entendido.

Simão Pessoa

Colunista d’O Ralho, poeta e humorista, dedica-se ao jornalismo cultural e à atividade de produção e criação publicitária. Foi editor de cultura Jornal Amazonas Em Tempo e colunista Jornal Correio Amazonense, entre outros veículos, e divulgador, em Manaus, da geração beat americana e da poesia marginal brasileira.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui