A Mesa da Diretoria do Bar Caldeira
Por José Rocha*
Até hoje é a preferida pelos mais antigos por dar uma visão
privilegiada de todo o interior do bar e ficar bem em frente ao
aparelho de televisão. Um lugar ótimo para assistir a um jogo de
futebol ou a apresentação de shows musicais interno. Por ser
grande é a preferida para fazer comemorações. Tradicionalmente,
quem senta na cabeceira de qualquer mesa grande é uma pessoa
importante, o chefe superior ou o pai de família. Traz destaque e
status para a pessoa. No Bar
Caldeira é a mesma coisa. No entanto, ficou famosa até os dias de
hoje por outro motivo. Segundo contam os mais antigos quem
sentar-se, costumeiramente, na cabeceira e de costa para a parede
está chamando a morte, pois traz agouro, antecipando a lista da fila
dos que irão para o andar de cima. Se for lenda ou não, eu não sento
lá de jeito nenhum. Na realidade, aquele lugar é o preferido pela
pessoa que bebe todo dia, pois dificulta a sua visualização por quem
passa à pé ou de carro.
Pavão – É representante de laboratórios farmacêuticos. Grande
músico e irmão do Mark Clark e do Flávio de Souza. Nunca o vi
bebendo no bar, no entanto passava todos os finais de semana por
lá, parava e olhava para dentro do bar e caso conhece o sujeito que
estava sentado na cabeceira da mesa, falava, na brincadeira:
– Tu vais ser o primeiro da fila!
De tanto tirar saro da cara dos outros foi apelidado de “Rasga
Mortalha”.
Tapinha – O seu prenome era Atalpha, mas por ser baixinho
ficou conhecido no bar como Tapinha. Certa vez ele foi à missa de
sétimo dia de um boêmio do Bar Caldeira, na Igreja de São
Sebastião, ele chegou atrasado e bêbado, ao entrar falou bem alto:
– Falavam que eu era o primeiro da fila, né? Tô nem ai. Ainda irei
enterrar muita gente, incluindo até o padre que está ai no altar!
A galera do Bar Caldeira estava em peso, todo mundo começou a rir,
incluindo a viúva, os parentes e até o padre e os coroinhas.
O Tapinha continuou sentando na cabeceira da Mesa da Diretoria e
tempos depois atravessou o espelho. O seu filho, o Athalpa Filho,
sucedeu ao pai na boêmia. Frequentava o Bar Caldeira aos domingos.
Ele tinha um mote:
– Prefiro ser corno a ser diabético!
Certa vez, o Athalpa estava em companhia do advogado Dr. Marco
Aurélio, conhecido por “Barrão”, os dois estavam bebendo no
Caldeira, quando passou por lá a namorada do Sacy da Pareca, a
“Sincera”, ela estava com um shortinho e sapatos altos, desfilando
pela José Clemente, quando ia descer o ladeirão da Lobo
D´Álmada caiu no chão, essa Athalpa deu uma risada bem alta e
ficava apontando para ela. Depois dessa, a Sincera nunca mais
apareceu por lá. Quando ele ia ao bar
ficava admirando a foto de seu pai ao lado do Vinicius de Moraes.
Infelizmente, não resistiu a Covid-19 vindo a falecer em
dezembro de 2020.
Doutor Lió – Era um dentista da melhor qualidade. Querido por
todos. Foi um bom amigo. Era espiritualista. Gozador nato e tirava
saro de tudo e de todos. Fumava que nem uma caipora. Era
inveterado por cigarros. Em 2011 foi aprovada a Lei 12.546 chamada
Lei Antifumo que proibia fumar em todo país em ambientes fechados
públicos e privados. Apesar de ainda não ser regulamentada, o que
somente aconteceu em 2014, o Adriano Cruz, colocou um aviso
proibindo expressamente os clientes fumarem dentro do bar. A lei
estabelecia multas e até a perda da licença de funcionamento em
caso de desrespeito a norma. A segunda providência foi jogar no lixo
todos os cinzeiros. Falava em voz alta:
– Quem quiser fumar, que fume, porém, lá fora, aqui dentro, não!
Agora é lei. Leia o aviso na parede.
Foi complicado. Muitos não aceitavam e teimavam em fumar no
interior do estabelecimento, o que eram na hora repreendidos. O
Doutor Lió era a única exceção.
Sempre após o expediente batia o ponto no bar e o seu lugar
preferido era exatamente àquele em que a maioria fugia
por ser agourento: a cabeceira da Mesa da Diretoria, de costas para a
parede. Meu Deus. O seu filho mais velho sempre ia ao bar pegar
uma grana com o pai, depois que o primogênito saía, ele falava:
– O filho passa nove meses na barriga da mãe e o resto da vida
colocando no do pai! – ficava batendo a mão direita aberta na mão
esquerda fechada.
Era tudo brincadeira, pois amava e admirava muito os seus filhos.
Quando levantava para “tirar água do joelho” falava:
– Agora vou pegar no pesado! – referindo ao seu bilau.
Segundo a atriz Socorro Papoula, ele tinha várias namoradas, mas
possuía uma preferida, era uma enfermeira baixinha e bonitinha.
Após tomar todas, pagava a conta e dizia:
– – Agora vou prá casa fazer sexo, a minha namorada Juceta já me
ligou várias vezes! – era a sua preferida.
Passou uma temporada sem fumar. Ficou abstêmio da nicotina.
Quando alguém perguntava o que ele fez para parar de fumar,
respondia:
– Prometi a mim mesmo se voltasse a fumar daria o traseiro duas
vezes por semana!
Não cumpriu a promessa e voltou a fumar novamente. Com o tempo
apareceu o nódulo no pescoço, foi crescendo lentamente. Um dia
reuniu alguns amigos do bar, entre eles o Adriano, Miudinho e o
Jorginho, foram para Maués, no navio Dona Carlota. Ninguém sabia,
mas estava se despedindo dos amigos e da vida. Morreu de câncer
pouco tempo depois. Será sempre lembrado por todos os velhos
boêmios.
O Lanterninha Farias – Trabalhou por longos anos no Cine
Guarany ajudando assentar as pessoas que chegavam atrasadas, pois
com a sua lanterninha sabia perfeitamente onde existiam cadeiras
vazias. Ele era um cara que tinha uma grande cabeleira,
tirando a todo instante do bolso um pente da marca “Flamengo” para
penteá-la. Usava sempre um enorme óculo de sol, acho que se
inspirava em algum ator de cinema das antigas, além de ter um
vozeirão daqueles e falava pelos cotovelos, parecia com aquele
comediante famoso, o “Zé Bonitinho”. O cinema era frequentado por
um grupo especial formado pelo Jeremias, Mococa e outros rapazes
alegres, que davam em cima da molecada. O Farias sempre ficava
de olho nessa turma que aproveitava a escuridão para alisar os
marmanjos. Muitos anos depois, reencontrei o Lanterninha Farias, no
Bar Caldeira, pois ele morava por aquelas imediações. Conversamos
muito sobre o nosso saudoso Cine Guarany, lembrando e sorrindo dos
velhos e bons tempos que não voltarão jamais. Aparecia somente
aos domingos quando a Velha Guarda se apresentava. Bebia somente
no lado de fora do bar. Era invocado com a Mesa da Diretoria, falava
que ela trazia agouro e quem ali se abancasse por um bom tempo,
faleceria precocemente. Coisas de louco. Passou uma temporada
enchendo “a cara” debaixo de uma árvore frondosa, no Bar
Mangueira, vindo a falecer tempos depois. De nada adiantou fugir
tanto da Mesa da Diretoria.
Artista Plástico Palheta – Era frequentador assíduo do Bar
Caldeira. Tive o privilegio de conhecer dezenas de trabalhos
realizados pelo grande artista plástico, bem como, de usufruir da sua
amizade e de ter tido a oportunidade de conhecer alguns causos
muitos hilários, tendo como personagem principal o nobre amigo.
Trabalhou no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia – INPA, no
período de 1975 a 1980, na respeitada função de ilustrador botânico.
Tinha uma capacidade incrível para retratar o rosto humano,
chegando até ser colaborador da Polícia Civil, fazendo o famoso
“retrato falado”. Durante todos esses
anos de amizade, sempre o apoiei, valorizando os seus trabalhos
artísticos, com publicações no BLOGDOROCHA, além de passarmos
horas conversando, rindo das piadas e causos que somente ele sabia
contar. Gostava de sentar-se somente na Mesa da Diretoria, pois era
um artista considerado por todos. Viva somente de seu trabalho, no
entanto, passava meses sem vender nenhuma obra, o que o deixava
cabisbaixo, mesmo assim não deixava de frequentar o bar e os
amigos do peito sempre pagavam umas ampolas para ele. Quando
estava “Barão”, andava bem vestido “no linho”, levantava os ombros
e a cabeça e pedia somente doses de Uísque. Falavam que ele ficava
esnobe e chato (boçal), mas era “mão aberta” e fazia questão de
retribuir pagando cervejas para aqueles que ele “serrava”, brindando
até com tira-gosto de Queijo Bola. Quando a fonte secava, voltava
novamente a “estaca zero”. Era o momento para armar-se de sua
prancheta, papel A4, lápis e borracha para fazer caricaturas no Bar
Caldeira, principalmente aos domingos à tarde quando se reunia a
velha guarda mais abastada financeiramente.
Certa vez, ele contou-me um acontecido no bar: chegou por lá um
sujeito que ninguém conhecia, ele ficou a observar o Palheta fazendo
o seu digno trabalho, chegou perto e falou-lhe:
– O amigo pode fazer a minha abreugrafia?
O Palheta arregalou os olhos e disparou:
– – Olha aqui me amigo, sou o artista plástico Palheta e faço
caricaturas, quem faz abreugrafias é ali embaixo
na Rua Lobo D´Álmada, vai lá e procura o Ambulatório
Cardoso Fontes!
O cara insistiu:
– Faz essa porra ai mermo!
O Palheta levantou-se, tufou o peito e pensou “Puta que o pariu, seu
eu não estivesse liso e com duas contas de luz atrasadas eu daria
umas porradas neste tuberculoso, somente para respeitar o trabalho
do artista plástico”. Mesmo assim fez um trabalho caprichado e pelo
abuso do camarada cobrou dobrado pela abreugrafia.
Outra vez, a jornalista Hermengarda Junqueira, do Jornal Amazonas
Em Tempo, encomendou uma obra do Palheta. Trancou-se em seu
ateliê na Rua Maués, no bairro da Cachoeirinha e fez um belo
trabalho. Ele estava “mais liso do que sabão na tábua”. O jeito foi ir
de ônibus até o bairro do Aleixo onde ficava a sede o jornal. O busão
estava lotado, colocou o quadro na cabeça e foi em pé. Ficava
esbarrando em todo mundo. Um cidadão falou:
– Não dá para o senhor abaixar essa Tábua de Pirulito!
Pense num cara puto de raiva:
– Isto aqui é uma obra de arte. Tábua de
Purulito é o caralho!
Ao chegar lá depois de muito sacrifício, a jornalista falou:
– Passe daqui uma semana para receber o seu dinheiro!
Ai foi para acabar de vez com o artista:
– – Pelo o amor de Deus! Tô na lisura. Vim de ônibus e fui xingado por
todos. Sem chance. Pague pelo menos
a metade agora!
Ela ficou sensibilizada e pagou tudo no monte. Ai foi graça. Pagou as
contas atrasadas e foi direto para o Bar Caldeira, sentou-se na Mesa
da Diretoria e começou a tomar Uísque com queijo bola, é claro!
Outra vez, ele e o artista plástico Inácio Evangelista foram
contratados para fazerem a ornamentação de carnaval do Clube Sírio
Libanês, na Avenida Constantino Nery. Quando estava tudo pronto,
chegou o promoter da festa para fazer a verificação dos trabalhos.
Falou:
– Quem fez esta decoração?
O Palheta “subiu nas tamancas”:
– Olha aqui, meu amigo, decoração é coisa de viado. Eu e o Inácio
somos artistas plásticos e fazemos uma obra de arte e não
decoração! O Evangelista só achava graça
da onda do Palheta.
Teve problemas sérios de saúde e veio a falecer em agosto de
2015. Hoje, as suas obras impressionistas e abstracionistas
estão muito valorizadas em Manaus.
A Turma do Meio-Dia – Existe uma turma que desde tempos
idos gosta de beber quando relógio bate meio-dia, na hora do
almoço. Falam que é para abrir o apetite. Geralmente a pedida é
cerveja, cachacinha, limão e sal. Isto é tradição. Passa o tempo,
alguns deles partem para o andar de cima, chegam outros,
sempre renovando.
Detalhe: eles somente gostam de sentar exatamente na Mesa da
Diretoria, sempre existindo um deles na cabeceira de costas para
a parede.
Cruz, credo!
José Rocha*
Sou da Mana Manaus, manauara da gema, escritor e boêmio igual ao
meu saudoso pai Rochinha; conhecedor e frequentador assíduo desde
tempos idos de todos os botecos tradicionais da nossa cidade, onde
presenciei in loco muitos causos e causas perdidas em noites quentes
cheias de gentes sedentas de cervejas, músicas e corações para se
apaixonar e desapaixonar no dia seguinte.
O meu amigo de longas datas, o Jack Cartoon, editor do O Ralho (a
visão contestadora, humorística e diária da realidade), pediu-me para
fazermos uma parceria, para eu escrever as minhas crônicas e ele
fazer as caricaturas, topei na hora. Será uma honra.