@amarildocharges

O PRINCÍPIO DO FIM

 

Precisamos deixar para a eternidade as belezas que construímos, os talentos e realizações que tivemos em todas as áreas e etapas da evolução humana. Deixemos também nossas vergonhas e fracassos, todo o horror que cultivamos, as ambições criminosas, os preconceitos, as ofensas, as arbitrariedades, o desrespeito com os iguais. E a falta de coragem que nos fez sucumbir como humanidade

Sábado passado, almocei com um grande e velho amigo. Melhor não tivesse ido. Esse meu amigo não dorme desde sexta-feira, quando uma bomba atingiu, na madrugada ucraniana, um prédio a apenas 500 metros dos seis reatores da usina nuclear de Zaporizhzhia, a maior do país e de toda a Europa. Estava transtornado, indignado e profetizava: o fim do mundo está mais próximo do que a gente imagina. “Preparai-vos, vem aí uma hecatombe nuclear”.

@amarildocharges

Da entrada à sobremesa, não falava noutra coisa. Acompanha, segundo a segundo, todas as ações militares no teatro da guerra. Conhece o efetivo de cada país e todas as armas, do artesanal coquetel molotov aos mais complexos e devastadores modelos de bombas. Monitora as agências internacionais, o Kremlim, a Casa Banca, e acompanha avidamente o sinal de quatro câmeras fixas, plantadas na Praça da Independência, ponto central de Kiev.

Extremamente cético, diz que não há a menor chance de um acordo de paz, passou do tempo em que poderia se chegar a um entendimento. Agora, segundo ele, a solução virá pela força, a força das bombas. Lembra que Rússia e Estados Unidos detêm 90% das ogivas nucleares do mundo – 5.977 estão na Rússia; 5.428, nos Estados Unidos; a Ucrânia não tem nenhuma. Uma guerra trará consequências desastrosas para todo o planeta.

Leu, não sabe onde, que as armas nucleares de Rússia e Estados Unidos são centenas de vezes mais poderosas que as bombas jogadas pelos americanos em Hiroshima e Nagasaki na Segunda Grande Guerra, matando cerca de 300 mil pessoas. E que um bombardeio nuclear vai mudar o eixo de rotação da Terra e provocar o rompimento da camada de ozônio que protege nosso planeta. Isso permitirá uma grande incidência de raios ultravioletas, que afetará o clima e devastará plantações. Não haverá mais alimento, nem internet, nem países com força para sobreviver à devastação. Será o fim da humanidade.

As notícias, nada animadoras, confirmam esse ceticismo: a Ucrânia pede que a OTAN e os países ocidentais fechem o espaço aéreo ucraniano, o que, em se atendendo o pedido, fará com que qualquer caça russo que entre nesse espaço aéreo seja abatido – querem pretexto maior para o início da Terceira Grande Guerra Mundial?

Meu amigo estava pasmo. Diz que, em sã consciência, ninguém pode desafiar impunemente o poderio nuclear da Rússia. Ela tem bombas para destruir todo o planeta. Mas que viu na tevê um comentarista intransigente defender que a Ucrânia deveria, sim, se filiar à OTAN e instalar um arsenal de guerra em suas terras. Opinião que, de tão estúpida, provocou um bate-boca danado.

Todas as cartas desse jogo mortal parecem estar nas mãos da Rússia. Lembra meu mensageiro do apocalipse que Putin não se importa com a paz, tem a obsessão de reerguer o império soviético, custe o que custar. E que, aos primeiros sinais dos efeitos das sanções comerciais adotadas pelo Ocidente, comentou, ameaçadoramente, que tal decisão era uma declaração de guerra. Lançará a primeira bomba?

Almoço indigesto esse. Voltei para casa tomado pelo pânico. Haverá amanhã? Que legado deixaremos para o universo? Será que alguma civilização distante desembarcará aqui para estudar nossos destroços? De que forma poderíamos deixar um testamento? Hieróglifos nas rochas? Um documento com fotos, textos e pen-drives numa cápsula blindada? Ou uma gravação com imagens e áudios, enviada para as lonjuras do cosmos?

Precisamos deixar para a eternidade as belezas que construímos, os talentos e realizações que tivemos em todas as áreas e etapas da evolução humana. Deixemos também nossas vergonhas e fracassos, todo o horror que cultivamos, as ambições criminosas, os preconceitos, as ofensas, as arbitrariedades, o desrespeito com os iguais. E a falta de coragem que nos fez sucumbir como humanidade.

Chego em casa e procuro um poema de uma ucraniana de nascimento, que viveu uma guerra no início do século passado: Chaya Pinkhasivna. “Naquela terra eu literalmente nunca pisei: fui carregada de colo”. Chaya tinha 1 ano quando veio para o Brasil com os pais judeus que fugiam da guerra civil russa. Aqui adotou o nome Clarice. Clarice Lispector. O poema chama-se Quero escrever o borrão vermelho de sangue. Separo um trechinho e mando para meu amigo fatalista, profeta do fim do mundo.

“Nada tenho a perder
Jogo tudo na violência
que sempre me povoou,
o grito áspero e agudo e prolongado, o grito que eu,
por falso respeito humano,
não dei. Mas aqui vai meu berro
me rasgando as profundas entranhas
de onde brota o estertor ambicionado
Quero abarcar o mundo
com o terremoto causado pelo grito
O clímax de minha vida será a morte.”

por Luiz Antonio do Nascimento – 07/mar/2022

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