Os recados das urnas
Por Carlos Santiago*
É possível traduzir as mensagens vindas das urnas eleitorais, pois as eleições não são somente o puro direito de votar do povo nos seus representantes, mas também um dos meios da liberdade de expressão com várias mensagens do eleitorado que precisam ser entendidas pelos eleitos e não eleitos, por todos os governantes e governados.
Depois dos resultados eleitorais no âmbito nacional e dos estados, o trabalho agora é captar os recados do eleitorado. O país saiu dividido das eleições. Sem crescimento econômico, sem melhoria social e sem realização de obras importantes. As narrativas do medo, do discurso moral e do uso da máquina pública deram uma votação expressiva ao atual presidente.
Há milhões de pessoas que ainda duvidam da honestidade do presidente eleito, do tamanho de sua relação com países com democracias frágeis ou sem valores democráticos e como ele vai tratar temas caros aos indivíduos, como o aborto e a liberdade religiosa, por exemplo. Além da permanência ou não dos auxílios sociais pagos pelo governo federal.
Após 12 anos fora do poder, com várias acusações e mais de 500 dias presos, o ex-presidente Lula recebeu milhões de votos, com a promessa de construir um país próspero, de inclusão social, de paz, de tolerância e respeito às diversidades culturais, mas sem perder a esperança de punir os responsáveis pelas tragédias na pandemia da Covid-19.
Há milhões de brasileiros que viram no ex-presidente o caminho dos investimentos em educação, em saúde, em ciência e tecnologia, em novos programas habitacionais e na necessária distância entre estado e religião. E, ainda, a continuação de um estado provedor de políticas de combate à pobreza.
Lula carrega dúvidas e desconfianças por parte de uma parcela significativa da sociedade brasileira. A votação e as manifestações contrárias ao ex-presidente precisam de respostas sólidas e convincentes. Para isso, é preciso fazer um governo de todos e para todos, independentemente de questões partidárias, na qual cada brasileiro se sinta representado.
O presidente Bolsonaro, o único que na história política não se reelegeu, necessita de uma compreensão melhor da sociedade brasileira. Tem que furar a bolha, ir além de seus valores pessoais, compreensão do mundo sem armas e com paz, saber que a vida social e política são mais ricas do que as dicotomias absurdas que espalham o medo, o ódio, a intolerâncias, o elitismos, a violência e a crescente desigualdade social.
As urnas mostram que um país sem paz e sem consensos não alcançará um Brasil melhor. Precisa-se de metas para construir uma educação diversa, cidadã e eficaz. Não chegaremos a uma prosperidade sem Ciência e Tecnologia, sem desenvolvimento econômico, sem inclusão e sem as potencialidades das diversidades culturais e regionais.
O presidente eleito tem missão árdua. Mudar o Brasil de hoje. Unir o país em torno de políticas públicas e de sentimentos fraternos. Não deve ser subestimado o clamor do eleitorado vencido nas eleições. Não deve ser esquecida a força social, política e religiosa do presidente Bolsonaro.
É necessário, portanto, um pacto de governança. Manter a independência entre os Poderes da República, com base na harmonia para trazer bem-estar para a sociedade. Produzir uma agenda convergente com os governadores e os prefeitos. Reafirmar o compromisso com a democracia.
O Brasil cansou de ser pensado como o país do futuro. Os conflitos e problemas sociais são frutos de vários governos. As urnas apontam para a resolução das nossas mazelas ou seremos uma população dividida ideologicamente, que busca no medo e no ódio as soluções para as nossas frustrações.
A força da democracia brasileira
A democracia brasileira mostra força. Nunca o país viveu em um período histórico com tanta liberdade. Os partidos políticos estão funcionando livremente, a imprensa tem liberdade de expressão e de informação, a sociedade civil exerce a liberdade de organização e de manifestação, os credos religiosos estão assegurados, eleições periódicas são realizadas e as instituições de Estado e os Poderes da República estão funcionando plenamente.
Personalidades públicas e pessoas simples opinam sobre vários temas nacionais, com críticas duras contra governantes ou com elogios aos acertos nas atitudes. As redes sociais transformaram a vida pública próxima de todos. As ações e decisões do Legislativo, do Judiciário e do Executivo são assuntos do cotidiano das famílias, das relações com os vizinhos e nos ambientes de trabalho.
Há inúmeras narrativas disseminadas na sociedade que apontam para o perigo de um eventual golpe contra a democracia ou que o Brasil estaria perdendo valores democráticos, como a liberdade de expressão, de reunião e de manifestação. Porém, não passam de discursos eleitorais em que o medo é utilizado como estratégia de marketing para vencer eleições.
A normalidade é bem exemplar. A presidência da República está sendo exercida por um presidente eleito; o Congresso Nacional está aprovando leis, fiscalizando o chefe do Poder Executivo e definindo políticas públicas; o Judiciário julgando e suas decisões são aceitas ou são contestadas dentro do devido processo legal.
Não duvido que existe no país um saudosismo autoritário e elitista nos Poderes da República e em alguns grupos sociais. Esse tipo de saudosismo irá sempre existir. No entanto, no país de hoje não há sustentação de autoridade via imposição das forças das armas ou da intolerância movida pelo elitismo encardido.
Os impactos sociais, econômicos e políticos da Nota Pública das Forças Armadas e do Relatório sobre integridade das urnas eletrônicas produzido pelo Ministério da Defesa foram insignificantes no atual contexto democrático. O Congresso Nacional, o Poder Judiciário, nem o presidente eleito deram importância aos documentos. Aliás, apenas reforçou o uso político das instituições de estado que deveriam entender melhor suas atribuições constitucionais e fazer jus aos recursos públicos recebidos.
Outros fatos envolvendo bloqueios de rodovias e acampamentos em frente a quartéis só reforçam, ainda, o poder das ideologias que levam pessoas a defender valores incabíveis no Estado Democrático de Direito. Democracia não é sinônimo de impunidade nem de liberdade para agredir e cometer crimes contra pessoas e a coletividade.
É claro que a democracia brasileira precisa de avanços. É urgente o combate à fome, à miséria, à desigualdade social e econômica. Precisamos de democracia social, expressa na melhor qualidade de vida da população. Isso tudo só é possível no sistema democrático, com a construção de um Brasil justo e fraterno. É o desafio dos governantes eleitos.
Avançar é preciso. O Brasil vem abandonando ideologias autoritárias. Os valores democráticos são defendidos pela maioria absoluta da população. O Estado Democrático de Direito é nossa grande conquista. No atual contexto do país, a democracia revelou sua força.
Carlos Santiago
Sociólogo, Analista Político e Advogado.