‘O bolsonarismo se empenha para que a pauta de discussão não extrapole o campo da moralidade e dos costumes”, escreve Jair de Souza

Para início de conversa, queria refrescar a memória dos leitores sobre o tema que estava entrando em pauta no momento em que se deu a criminosa agressão contra agentes da Polícia Federal de parte do bandido bolsonarista Roberto Jefferson.

Três dias atrás, tinha sido revelado ao público o plano do ministro da economia bolsonarista Paulo Guedes de acabar com a política de reajustes do salário mínimo com base no índice da inflação. Se efetivada, essa medida, além de afetar diretamente a massa salarial dos trabalhadores, vai incidir também no valor das aposentadorias e em todos os demais benefícios previdenciários, os quais deverão sofrer significativa redução a partir de sua implementação. O sofrimento de nossa população mais vulnerável vai aumentar, com certeza.

Muita gente suspeita que, uma vez mais, o bolsonarismo está fazendo uso de sua costumeira prática de desviar nossa atenção para tirar do debate tópicos que ameaçam erodir severamente sua reputação entre os menos informados e substituí-los por questões que não ameacem a essência do sistema de exploração do qual os ricos obtêm seus privilégios.

O bolsonarismo atua em defesa dos interesses das classes dominantes. Essas classes sabem que não têm como conquistar a simpatia das maiorias populares em torno de questões socioeconômicas que digam respeito a suas condições concretas de vida. Portanto, o bolsonarismo se empenha para que a pauta de discussão não extrapole o campo da moralidade e dos costumes. É por este meio que eles esperam poder criar e enfatizar laços de afinidade entre grupos humanos que vivem realidades sociais sem quase nada em comum. É assim que se desenvolve um trabalho que visa unificar, por exemplo, banqueiros e latifundiários, por um lado, com trabalhadores de poucas posses e gente de classe média, por outro.

No entanto, tenho a impressão de que esta recente agressão do bandido Roberto Jefferson aos policiais da PF está intrinsecamente relacionada com a política antitrabalhista do bolsonarismo e também com seu incentivo ao armamentismo. Em outras palavras, tem tudo a ver com os interesses materiais das classes dominantes e sua tentativa de preservá-los. A política de liberação da aquisição e porte de armas joga um importante papel neste panorama. Nas seguintes linhas, vou procurar esclarecer como esses vínculos estão entrelaçados.

A partir do golpe contra o governo de Dilma Rousseff, em 2016, teve início no país um avassalador processo de destruição de nossas indústrias de base, combinado com um projeto de brutal retirada de direitos das classes trabalhadoras. Como consequência, o desemprego e a miséria cresceram como nunca antes. As ruas de nossas grandes cidades estão agora todas repletas de seres humanos sobrevivendo ao relento, sem nenhum tipo de assistência social das estruturas governamentais.

Indubitavelmente, os ideólogos das classes dominantes têm plena consciência de que lhes vai ser impossível impedir uma explosão social num prazo relativamente breve. E é por isso que o bolsonarismo, em nome dos interesses dessas classes, se dedica com tanto afinco a sua campanha de expansão da posse de armas em nossa nação.

Mas, o refrão bolsonarista que diz que “povo armado é povo que não será escravizado” não foi feito para incluir como integrantes desse povo os camponeses sem terra, os trabalhadores desempregados, os milhões de habitantes de nossas favelas e, menos ainda, nossas comunidades indígenas. Para o bolsonarismo, a liberdade para se armar deve ser ampla e irrestrita, desde que se atenha àqueles que atuam em conformidade com os interesses dos poderosos senhores do capital, seja do capital financeiro, seja do capital do agronegócio. Na hipótese de que os que apareçam empunhando armas de fogo sejam pessoas do campo popular, a velha tradição de “atirar na cabecinha” deve ser observada com rigor.

Quando os líderes bolsonaristas pregam o livre direito de todos a adquirir e portar armas de fogo, nós sabemos muito bem o que isso significa. Basta uma rápida sondagem pelos buscadores da internet para constatar que uma metralhadora custa entre R$ 150.000,00 e R$ 300.000,00; o preço de um fuzil está na faixa que vai de R$ 10.000,00 a R$ 20.000,00; o valor de mercado de uma granada eu não consegui encontrar, mas suponho que não seja pouca coisa.

 

Em vista disto, podemos nos perguntar: Quem vai se favorecer com a liberação da comercialização e do porte de armas de fogo em nosso país? Será que nossos trabalhadores e nossa classe média dispõem de recursos suficientes para alimentar suas famílias e também comprar um rifle, um fuzil ou uma metralhadora? Quanto aos banqueiros, os latifundiários, os grandes capitalistas e seus prepostos, não há nenhuma dúvida de que eles, sim, vão poder aproveitar muito bem as vantagens de tal liberação.

Não é à toa que o governo bolsonarista prefere incentivar o crescimento do número de clubes de tiro à criação e melhoria de escolas públicas. Os bolsonaristas procuram transformar esses locais em células para a formação e treinamento de suas milícias privadas. Várias dessas instituições são ligadas a organizações neonazistas internacionais. Num documentário produzido pelo jornalista Joaquim de Carvalho encontramos informações valiosas sobre um desses estabelecimentos em Santa Catarina, o qual era frequentado concomitantemente pela pessoa acusada de esfaquear o líder bolsonarista em Juiz de Fora e o filho do mesmo. Para quem ainda não o viu, este é o momento de ver (https://vimeo.com/741280632). Para manter tanta gente subjugada e sem condições de reagir, o bolsonarismo vai depender da retaguarda armada desses grupos milicianos.

Para sintetizar, nas condições de neoliberalismo desenfreado que o bolsonarismo pretende manter nosso país, garantir o poder de fogo exclusivo das classes dominantes passa a ser um fator de grande relevância. Na imensidão das desigualdades de nossa nação, enquanto os milionários e seus prepostos se isolam em seus condomínios privados com todo o luxo e comodidade que o dinheiro pode comprar, as maiorias desamparadas são lançadas ao deus-dará. Para impedir que seu descontentamento desemboque em ameaças à integridade do patrimônio das oligarquias, as milícias armadas que as servem devem estar de prontidão.

Esta concepção da seletividade na liberação e expansão das armas de fogo em nosso país fica evidenciada no episódio envolvendo o bandido bolsonarista mencionado com anterioridade.

Como justificar que Roberto Jefferson, um condenado pela justiça em prisão domiciliar, tenha tido a possibilidade de adquirir granadas e metralhadoras para resistir a uma intimação de agentes da Polícia Federal? Como explicar a atitude do agente da PF enviado para negociar com Roberto Jefferson sua detenção depois de ele ter cometido a agressão? Por que tanta reverência e docilidade com alguém que tinha acabado de lançar uma granada e disparado tiros de fuzil contra outros policiais? Teria sido assim pelo fato de que Roberto Jefferson, apesar de ser um reconhecido bandido e corrupto, julgado e condenado, é um fiel aliado dos interesses das classes dominantes e um prócer do bolsonarismo?

Jair de Souza
Economista formado pela UFRJ, mestre em linguística também pela UFRJ

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